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CATARSE

  • Foto do escritor: Vestal
    Vestal
  • 3 de nov. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 14 de dez. de 2024

Dirigindo pelas ruas da cidade ouço uma rádio de músicas brasileiras, quando começa tocar Negro Amor[1]. A voz é deliciosa, envolvente, diferente, andrógina, já tinha ouvido algumas vezes essa versão da música com essa pessoa, gostei, mas não fui buscar o/a intérprete. Naquele momento fiquei perturbada, queria saber de quem era aquela voz. Me lembro de ter passado por esse êxtase uma vez na vida, ao ouvir Eddie Vedder[2], nos anos 90, a cantar Alive, com tanta intensidade que me tornei fã, imediatamente. É uma voz que envolve, parece que passa uma corrente elétrica no corpo e, a mim, desperta uma curiosidade para conhecer o trabalho do/a artista. Foi o que fiz.

Na primeira oportunidade fui a busca, fácil de achar nos aplicativos de música, se fosse há algumas décadas teria que aguardar, ouvir de novo e torcer para o locutor anunciar o/a cantor/a. Hoje é fácil, rapidamente descubro o/a intérprete e todo seu trabalho, era Filipe Catto, uma artista trans não binária, gaúcha, instrumentista, compositora, ilustradora e designer brasileira.

Ouço tudo, gosto de tudo. Embora temos uma gama enorme de cantores jovens com trabalhos de alta qualidade, mas, há tempos não sou despertada artisticamente assim. Sem ser saudosista, existe um movimento intenso acontecendo em todas as artes, e para mim é quase que uma missão descobrir e apreciar, “ossos do ofício”.

Começo seguir nas redes sociais, coisa que tenho feito somente com assuntos que me acrescentam, cansei de ver coisas vazias, fúteis, ocupando um espaço que poderia ser preenchido com inteligência. Logo fico sabendo de um show e subitamente compro ingresso.

A data é longínqua, e enquanto aguardo o dia do show, comento com um e outro, ninguém conhece ou se interessa, mas no dia chamo Fabrizio, que rapidamente faz uma pesquisa sobre a artista e aceita de pronto o convite.

Lá vamos nós para uma experiência imersiva. O lugar é inusitado, um espaço que era um cinema, próximo da Praça da Sé. Erro feio no figurino, pensava se tratar de uma casa de show com mesas, chego toda inapropriada, e lá ficamos de pé a aguardar, demora para começar.

De repente surge no palco aquela figura esguia, descalça, com o corpo seminu, envolta em tecido vermelho transparente, exibindo uma fusão perfeita de corpo masculino com feminino. Ela canta com gestos delicados e fortes, como sua voz, suas mãos desenham as músicas no ar, todo seu corpo canta. Canta Gal Costa, canta outras canções. Eu e Fabrizio entramos num túnel de prazeres sensoriais, saímos do show enebriados e, a primeira coisa que faço ao chegar em casa é caçar outro show dela para ir.

O próximo show, em um espaço novo, no centro histórico de São Paulo, onde existia a Bolsa de Valores, é intimista, voz e violão. Filipe aparece despojada, de shorts, cabelos feito um rabo de cavalo, aparência cansada, tinha acabado de fazer outro show ali mesmo, e falou sem cerimônias de seu esgotamento. Temo por esse excesso, cumprir agendas, muitas vezes exigências, imposições, coisas de empresário, e o/a artista se deixa levar. Precisa haver equilíbrio para o prazer não virar tormenta.

Desta vez sentei, na frente, e fiquei embasbacada, hipnotizada. Ficaria por horas ali apreciando. Neste show nós, eu e Fabrizio, mantivemos a compostura, embora não menos envolvidos pela beleza daquela voz e a maestria da interpretação, mas sentados até o fim.

Na terceira imersão, vamos a um espaço mais sofisticado, diria que outra “vibe”. Muitas pessoas bebendo e circulando, um desperdício diante daquela beleza acesa por dentro[3], e por fora. Tanto fizemos que chegamos na cara do palco e nos embebedamos daquela voz, cantando, dançando e vibrando.

Filipe estava novamente envolta em tecidos transparentes exibindo seu corpo musical. Os pés descalços fincados no palco sagrado (poucos são os que têm essa presença).  Muitas músicas de nossa Gal, e a performance fabulosa, “ar-re-ba-ta-do-ra!”, como disse Fabrizio.

Decido escrever sobre nossa catarse[4], tentar verbalizar uma experiência que proporciona tantos sentimentos, um bálsamo no meio das adversidades cotidianas. Porque é na música que nossas almas se encontram e dão as mãos, celebrando o que há de mais bonito na vida, e passamos por um processo de transformação.

Essa sensação boa reverbera muitos dias em mim, faz ter picos de bem estar e melancolia, ao mesmo tempo. A parte boa consegui transcrever, mas o abatimento ainda precisa de análise, pois se assemelha a um orgasmo abortado.

Vamos aguardar o próximo show.

Eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés[5].


[1] Música Negro Amor: versão em português, escrita por Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti em 1977, de 'It's All Over Now, Baby Blue', composta por Bob Dylan em 1965.

[2] Eddie Vedder é vocalista da Banda norte americana Pearl Jam.

[3]  Belezas São Coisas Acesas Por Dentro, título do novo trabalho da artista, e do show.

[4] Definição do dicionário: 1. Na psicologia: liberação de emoções ou tensões reprimidas, comparável a uma ab-reação. 2. Na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe.

[5] Música “Dê Um Rolê” é uma canção da banda Novos Baianos, lançada em 1971 dentro do compacto de mesmo nome, com composição de Moraes Moreira e Luiz Galvão.



 
 
 

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